Geografia
04/01/2010
Vozes d'África
Sobretudo por conta da próxima Copa do Mundo de futebol, a África tornou-se o continente mais em evidência dos últimos meses, com destaque, evidentemente, para a África do Sul, anfitriã do torneio pela primeira vez disputado num país do continente. A bola começa a rolar em 11 de junho, em Johannesburgo. Durante um mês, os olhos do mundo inteiro estarão concentrados na terra de Nelson Mandela e Steven Pienaar. E, por tabela, em toda a África negra.Guerras civis, disputas tribais, fome, miséria, aids, opressão contra as mulheres - são essas as primeiras coisas que a África nos evoca. Ditadores também. Numa lista dos 20 piores déspotas do planeta, compilada em 2006, 6 tiranizavam no continente africano. Ainda tiranizam, mas essa África, com seus horrores conradianos e o pitoresco primitivismo mitificado por Kipling, Rider Haggard e Evelyn Waugh, tende a desaparecer como desapareceu o apartheid. Aí então poderemos estirar a língua, ou melhor ainda, dar uma banana para os historiadores Andrew Roberts, Robert Calderisi e outras viúvas do colonialismo europeu, que até hoje professam uma descabida fé nas virtudes superiores dos impérios que por décadas a fio dominaram, a ferro e fogo, as savanas e o deserto africanos.
Apesar do colossal atraso (18 dos 20 países mais pobres do mundo ficam lá), da persistência dos cruéis rituais zulus de iniciação sexual, do flagelo da aids e de um baita etc., a África afinal não se deteriorou por completo depois que os bwanas a deixaram entregue à própria sorte, obrigada a superar obstáculos criados e amplificados pelo colonialismo predatório de ingleses, franceses, holandeses, portugueses e alemães. Quem podia imaginar, três décadas atrás, que a África do Sul fosse abolir o apartheid e tornar-se um dos países politicamente mais estáveis e democráticos do mundo, um modelo para os vizinhos, uma meca turística, um polo de produção cinematográfica - e, agora, sede de uma Copa do Mundo, após ter sediado uma Copa das Confederações?
Na África nasceu o verdadeiro Adão. Também lá brotaram as raízes da melhor música popular de todos os tempos. Os cromossomos do jazz e do samba saíram de suas aldeias, o blues surgiu no Mali e a rumba, no Senegal. Na constelação da World Music o canto de Salif Keita, Kandia Kouyate e Ndala Kasheba, o som das guitarras de Sam Mangwana e Boubacar Traore e o juju nigeriano de King Sunny Ade brilham com notável intensidade, reverberando nos iPods caucasoides. Hugh Masekela, o Mandela da música de protesto contra o apartheid, suposto precursor do hip-hop, abafou a banca no Barbican de Londres, no início de dezembro. Até ópera os africanos já estão exportando.
Enganam-se os que pensam que africanos só se sobressaem em artes primitivas (música, artesanato) e esportes de corrida. O que dizer de Timbuktu, por exemplo? Como milhões de ocidentais ignorantes, cresci achando que Timbuktu era um lugar fantasioso, uma aventuresca locação de cinema, uma Xangri-lá africana, até descobrir que ela não só existe de verdade, num dos países mais pobres da África, Mali, como foi uma espécie de Paris da Idade Média. Quando a Renascença mal começava na Itália, Timbuktu já era um centro cultural e religioso sem paralelos na Europa, com o maior acervo da palavra escrita do seu tempo e o que de mais rico o islamismo produzira até então. Está fazendo 20 anos que a Unesco transformou-a em patrimônio mundial.
A África tem muito a mostrar ao mundo e nesse ano descobriremos muito mais sobre ela.
Fonte: O Estado de São Paulo (leia texto na íntegra)
Acessado em 26/12/2009. Todas as modificações posteriores são de responsabilidade do autor do texto.