Disciplina - Geografia

Geografia

05/11/2007

Internacionalização da Amazônia é tema recorrente em escolas militares

Monografias de oficiais das Forças Armadas reforçam
teoria sobre conspiração dos países desenvolvidos

Por Luiz Sugimoto
Ribeirinhos atravessam o rio Juruá, no estado do Amazonas: segundo o autor da tese, população vive sob todo tipo de ameaça, apesar do aumento efetivo.
A teoria sobre uma conspiração dos países desenvolvidos – Estados Unidos à frente – para a internacionalização da Amazônia está fortemente impregnada entre os oficiais das Forças Armadas brasileiras. Esta é uma das conclusões do filósofo e psicólogo Humberto José Lourenção, em tese de doutorado abordando o pensamento militar sobre a região – concepções geopolíticas, estratégicas de defesa – apresentada no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.
Região é o novo símbolo mobilizador das três forças
Professor da Academia da Força Aérea de Pirassununga (SP), uma escola do Comando da Aeronáutica, Humberto Lourenção é um civil que integra os quadros do Ministério da Defesa e, nesta condição, teria acesso aos bastidores para entrevistas que suprissem sua pesquisa. No entanto, preferiu centrar as análises em escritos que foram tornados públicos.
A tese Forças Armadas e Amazônia (1985 a 2006), orientada pelo professor Shiguenoli Miyamoto, baseia-se principalmente em monografias produzidas por oficiais da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), da Escola de Guerra Naval (EGN) da Marinha e da Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica (Ecemar). Também serviram como fontes as publicações oficiais das três forças e vários sites alimentados por militares da reserva ou aposentados.
“As monografias são importantes porque equivalem ao mestrado da nossa academia. Seus autores saem com patente de coronel, geralmente para ocupar postos de comando influentes, atuando inclusive na definição de políticas de defesa. O interessante é que muitas foram escritas por quem serviu durante anos na Amazônia”, explica Lourenção.
Segundo o professor, com a dissolução da União Soviética e o fim da Guerra Fria – e da ameaça comunista no plano interno –, e dos vários acordos de cooperação que amenizaram as tensões com a Argentina, a Amazônia tem se tornado, cada vez mais, um símbolo mobilizador das Forças Armadas.
“Nos últimos vinte anos, a presença das Forças Armadas naquela região só tem aumentado, com o deslocamento de pelotões do Exército dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul, principalmente para a fronteira norte com a Guiana, Venezuela e Colômbia”, informa o pesquisador.
Ainda assim, na opinião do autor da tese, as forças na Amazônia estão extremamente aquém da necessidade, havendo uma linha de fronteira de 1,2 mil quilômetros (quase a distância do Rio de Janeiro a Porto Alegre) totalmente desguarnecida. “Não há um pelotão do Exército ou um posto da Polícia Federal. A população vive à mercê de todo tipo de ameaça”.
Humberto Lourenção afirma que o pensamento das Forças Armadas sobre a Amazônia é antagônico ao das autoridades e entidades civis, da Igreja e das instituições de pesquisa. “Enquanto os civis apontam ameaças pontuais – como tráfico de drogas, biopirataria, desmatamento e poluição dos rios, além dos graves problemas sociais –, os militares temem pela soberania sobre o território, devido à ‘cobiça’ dos países ricos”.
Conluio – Daí que as monografias apontam claramente para uma conspiração, mediante a difusão junto à comunidade internacional da idéia de que o Estado brasileiro é incompetente para garantir a defesa do território, a integridade dos indígenas e da biodiversidade. Prepara-se, assim, o terreno para uma intervenção na região.
“A Amazônia não é do Brasil, é patrimônio da humanidade”, seria um slogan da campanha. Outra frase lembrada nos escritos dos oficiais circulou como decalque em vidros de carros da Inglaterra, Holanda e Bélgica: “Lute pelas florestas. Queime um brasileiro”.
De acordo com o autor, sob a perspectiva militar, a demarcação de imensas reservas indígenas junto às fronteiras traz claras ameaças à soberania nacional. Na Amazônia existem perto de 133 mil índios conhecidos, que ocupam mais de 1 milhão de quilômetros quadrados. Pouco mais de 9 mil ianomâmis estão numa área três vezes maior que a da Holanda ou da Bélgica.
O filósofo e psicólogo Humberto José Lourenção: “Enquanto os civis apontam ameaças pontuais, os militares temem pela soberania”
“Os militares consideram exagerada a preocupação de outros países com os ianomâmis, que vivem numa área rica em ouro, diamante, estanho, cobre, chumbo e urânio, enquanto outras tribos amazônicas são ignoradas. Alguns textos advertem que a defesa dos ianomâmis, por exemplo, pode servir de pretexto para transformar sua reserva, na fronteira com a Venezuela, em estado independente”, diz o professor.
Organizações não-governamentais (ONGs), segundo Lourenção, também são vistas com desconfiança. “Os militares se incomodam profundamente quando essas organizações assumem o papel do Estado. Há monografias relatando rusgas com militantes estrangeiros e denunciando ONGs que abrem escolas onde as aulas são dadas em inglês, com o intuito de minar nossa soberania”.
Pessoalmente, o pesquisador admite adotar as ONGs como tema de pós-doutorado, mapeamento todas as que estão presentes na Amazônia e realizando pesquisas in loco para avaliar como elas atuam. “Isso permitiria uma crítica mais consistente e isenta, haja vista a acusação das ONGs de que são usadas para justificar o orçamento dos militares, agora que estes não têm mais o comunismo como inimigo”.
Defesa – Os oficiais das Forças Armadas que crêem na conspiração para a internacionalização da Amazônia entendem que, no contexto atual, o único país em condições de promover uma investida militar, unilateralmente, são os Estados Unidos. “Esses autores não consideram a possibilidade de uma invasão imediata, mas nas próximas décadas”, esclarece Humberto Lourenção.
A expectativa é de uma “guerra preventiva”, como a desferida contra o Iraque a pretexto da destruição de armas químicas e nucleares. A estratégia de defesa para o Brasil mais comentada nas monografias é a “dissuasória”, assim denominada porque visa causar prejuízos ao potencial agressor, desestimulando-o de efetivar o ataque.
“Trata-se de ocupar a floresta e usar táticas de guerrilha, como os vietcongs, contando com o apoio da população. Não é à-toa que os batalhões de fronteira recrutam tantos indígenas. A idéia de integrar o nativo, o ribeirinho, está dentro da estratégia maior da dissuasão”, explica o professor.
Falso mapa – Além da grande quantidade de monografias e de artigos sobre a Amazônia publicados em periódicos oficiais dos comandos militares e da Escola Superior de Guerra, o autor da tese reuniu textos e manifestações ideológicas em sites produzidos por militares fora da ativa. “Descompromissados com a carreira e a hierarquia, os reformados e aposentados escrevem o que pensam”.
Partiu de um site ultranacionalista um conteúdo em tom alarmista, anunciando “a tomada da Amazônia”, que foi replicado por todo o país. Humberto Lourenção recebeu dez vezes o mesmo spam, veiculando o que seria a página de um livro de geografia distribuído nas escolas secundárias (high schools) dos Estados Unidos.
A página traz um mapa da América do Sul, onde a Amazônia não faz mais parte do Brasil e aparece como “área internacional de floresta”. Consultado, um especialista logo percebeu a pobreza do inglês que acompanhava a imagem, que não poderia ser do autor do livro de geografia.
O aparato das Forças Armadas na região
A tese de Humberto Lourenção se atém ao período de 1985 a 2006 por outros motivos, como o início do governo civil e a readequação do papel das Forças Armadas, além da implantação de dois grandes projetos de defesa da Amazônia: o Programa Calha Norte (PCN) e o Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam).
O Sivam, por sinal, foi objeto da pesquisa de mestrado de Lourenção. “O Sivam está subutilizado. O uso mais eficaz do seu aparato tecnológico depende de um órgão maior, interministerial, que é o Sipam (Sistema de Proteção da Amazônia)”.
O autor afirma que aviões, radares e outros dispositivos de sensoriamento do Sivam poderiam ser de maior valia para ministérios como da Saúde e da Justiça (Política Federal) e para órgãos que atuam na Amazônia, como o IBGE em relação à cartografia e o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) nos estudos meteorológicos.
“As universidades também poderiam alimentar o sistema com informações e fazer melhor uso dele para explorar a biodiversidade. A biopirataria ocorre em pleno mercado Ver-o-Peso de Belém do Pará, onde pessoas compram e vendem plantas e animais. Podíamos gerar mais patentes, ao invés de pagar royalties pelas essências”, observa.
Efetivos – Humberto Lourenção lembra que enquanto isso, por terra, a Amazônia vem sendo o objetivo do maior remanejamento de tropas da história da República, com custos na ordem de centenas de milhões de reais em transporte, equipamentos e obras civis para instalação dos militares.
Ao longo da década de 1990 foram criados novos batalhões de fronteira e batalhões de infantaria na selva, com as transferências, por exemplo, da 1ª Brigada de Infantaria Motorizada de Petrópolis (RJ) para Boa Vista (RR), e da 16ª Brigada de Infantaria Motorizada de Santo Ângelo (RS) para Tefé (AM).
Entre 1998 e 2002, o número de soldados na longa linha de fronteira da Amazônia (com sete países) cresceu de 3,3 mil para 23,1 mil. A partir de 2000 ergueram-se novos quartéis em Uiramutã, Tiriós, Pará-Cachoeira e Maturacá.
A Marinha também mobilizou suas forças: em 1994, transformou a Flotilha do Amazonas em Comando Naval da Amazônia Ocidental; em 2002, iniciou a mudança do Grupamento de Fuzileiros Navais para Batalhão de Operações Ribeirinhas.
Fonte: Jornal da Unicamp, 05 a 11 de novembro de 2007
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